Liberdade religiosa, a mãe das liberdades

     

Por Célio Barcellos
Talvez nós brasileiros compreendêssemos melhor a liberdade religiosa se fôssemos parte daquele grupo de puritanos que povoou os Estados Unidos da América ao fugir das perseguições religiosas na Europa. Os fundadores americanos criaram um país onde poderiam exercer livremente a liberdade religiosa, algo caro para eles. Dentre os pais fundadores, a figura de Roger Williams se destaca em prol da liberdade religiosa. 

Para Williams, a liberdade religiosa é como se fosse a mãe das liberdades. Diferente do britânico John Locke que defendia apenas a tolerância, Williams “argumentava não apenas a favor da tolerância, mas da liberdade; ele reconheceu que liberdade religiosa deveria ser compreendida como um direito humano fundamental e não um critério legislativo.”[i]

Sabedores de quão daninho era o poderio da religião estatal, os fundadores dos Estados Unidos da América trataram de deixar bem claro na Primeira Emenda da Constituição criada em 15 de dezembro de 1791que o Congresso passa a ser impedido de: “Estabelecer uma religião oficial ou dar preferência a uma dada religião”. Eles trataram de instituir a separação entre a Igreja e o Estado.

No contexto recente em que a pandemia provocada pela Covid-19 afetou o cotidiano das pessoas, os brasileiros, além do infortúnio da praga, teve de conviver com decretos abusivos que afetaram em cheio a sua liberdade. Numa briga de poderes, a mais alta Corte da justiça brasileira delegou aos estados e municípios as ações de combate à pandemia. O Brasil, desde a unificação comandada por José Bonifácio para a sua integração, teve de ver o seu território governado por decretos regionais e não por sua Constituição. 

De uma hora para outra, em nome do bem-estar social, a truculência invadiu as ruas obrigando pessoas nas praças e praias a serem tiradas desses locais à semelhança de um judeu carregado para a prisão em tempo de nazismo ou até mesmo de um cristão no auge da inquisição. No que se refere à religião, a situação extrapolou a ponto de lugares sagrados serem violados em que até mesmo transmissões onlines foram interrompidas. Houve lugares que até casas foram invadidas para interromper o momento litúrgico da família. 

Mediante a esses abusos, a Associação Brasileira de Juristas Evangélicos (ABRAJUR), entrou com uma ação exigindo a garantia constitucional da religião. Garantia essa, definida como Cláusula Pétria, no art.5, inciso VI, que diz o seguinte: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. [ii]

Como no Brasil as coisas demoram ser julgadas, após um ano do ocorrido e num contexto de maior pico da Covid, a justiça brasileira que deveria ter punido prefeitos e governadores por seus excessos lá atrás evocando a Constituição, decidiu na última quinta-feira (8), enterrar a Constituição Federal em detrimento dos decretos. 

Na opinião de Luigi Braga, membro da ABRAJUR, é preciso “cuidar para não colocar o direito à liberdade religiosa em oposição ao direito à vida”. E ele ainda enfatiza que é necessário muita cautela com a frase: “Igreja aberta viola o direito à vida”. Se porventura há igrejas que não estão respeitando o distanciamento necessário e os protocolos de segurança, o próprio estado tem elementos para enquadrar os seus responsáveis. Mas é muito perigosa essa afirmação. 

Cristãos que embarcam na onda autoritária do estado avalizando decretos, não param para pensar que ambos os decretos poderão se voltar contra os mesmos devido aos precedentes presenciados atualmente. O crescente cancelamento às vozes conservadoras e o ódio aos princípios que nortearam o surgimento da civilização ocidental, deveriam deixar alerta não somente os cristãos, mas todo defensor da liberdade. 

Exemplos recentes não faltam quando no contexto político, conservadores tiveram suas casas invadidas e foram enquadrados sem o devido processo legal. Houve muitas palmas da ala extrema contrária. Fernando Gabeira, um dos poucos jornalistas da ala progressista denunciou veemente a forma truculenta, pois percebera os riscos que atitudes como as utilizadas, poderiam resultar. Todo cidadão, seja ele de direita ou de esquerda, deve ser enquadrado se cometer delitos. Neste caso, a justiça precisa ser cega. Mas dentro da legalidade. 

De acordo com Samuel Gregg, não dá para imaginar o Ocidente sem o legado judaico-cristão. Desde a ética aristotélica, ao método socrático, bem como a metafísica platônica, tudo isso causou a junção da racionalidade grega com a revelação particular do Deus hebreu na formação do Ocidente.[iii] A pessoa pode até não concordar com a diversidade de pensamento, mas ao olhar para o casamento entre Grécia e Jerusalém tem a obrigatoriedade da tolerância.

A pandemia é grave e deve ter a colaboração de todos para combate-la ou para enfrenta-la. No entanto, desde o seu início, houve uma polarização iniciada por governantes que não toleram o atual chefe da nação, desrespeitando inclusive a democracia. Uma verdadeira guerra de narrativas foi iniciada na imprensa tradicional e nas redes sociais. De um lado os defensores do governo e do outro, os oposicionistas travando verdadeiras baixarias em nome do suposto bem comum, mas que não conseguem enxergar o principal inimigo – o ego. 

O grande dilema é que a sociedade está sofrendo e não há solução humana se não por meio da intervenção divina. A ilusão de que um governo tem a solução, não passa de um sonho ideológico recheado de fanatismo religioso. Neste prisma, Yuval Harari menciona que a “era moderna testemunhou a ascensão de uma série de religiões baseadas em leis naturais, como o liberalismo, o comunismo, o capitalismo, o nacionalismo e o nazismo”.[iv] Para Harari, esses “credos não gostam de ser chamados de religiões e se referem a si mesmos como ideologias.”[v]

O melhor a se fazer é fixar o olhar no que o pensamento judaico através do profeta Daniel há muito ensinou à humanidade: “...como viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro” (Dn 2:45). Mesmo como sendo ultrapassadas para alguns, as Escrituras fornecem a segurança adequada para os anseios e sofrimento humanos. 

Daniel teve a coragem de dizer ao rei que a autoridade com que ele governava vinha de Deus (v.37). Quem atualmente terá a coragem de dizer aos poderosos que sua autoridade vem de Deus mediante a escolha humana? Como falar de Deus em um mundo secular em que cristãos seculares se utilizam do “fogo amigo” ao culparem a igreja, mas que se esquivam em responsabilizar os desmandos de autoridades? 

A igreja tem o seu papel na sociedade e vai continuar utilizando-o. Ela é um organismo vivo e vai sobreviver independente de paredes e daqueles que torcem por seu fechamento total. O que precisa ficar claro é que a discussão inicial não foi o fechamento nesse auge da pandemia, até porque, a maioria das igrejas já estava colaborando, mas sim, nos abusos orquestrados por miniaturas de ditadores que ano passado, cercearam um direito pleno dos religiosos brasileiros. 

Se você não vê nada demais em o estado corroborar com decretos abusivos, você também não percebe quando defensores de princípios conservadores são acusados de fazerem parte de um sistema opressivo, ao defenderem Deus, família, vida e liberdade. Se Roger Williams estivesse aqui, ele continuaria a defender a liberdade. Certamente, ele concordaria com Scott, quando disse que a “América não é a Nova Jerusalém e nem o Ocidente o paraíso da perfeita justiça. No entanto, é o lugar de melhor tolerância no mundo por oferecer as liberdades que o ser humano necessita.”[vi] Pelo menos, era. 

Só quero dizer que, se há igrejas abusando de sua liberdade, também me parece haver autoridades abusando de seu poder e ambos devem ser combatidos. Disseminar a ideia de que "igreja aberta viola o direito à vida" é censurar a liberdade de quem faz o certo em amenizar o sofrimento psicológico e social de milhões de pessoas que não possuem condições que a menor parte da população desfruta. Ou a gente se une para desgraçar o vírus, ou o vírus nos desgraçará. Que Deus livre a todos! 



[i] James Calvin Davis, On Religious Liberty: Selections from the Works of Roger Williams. Massachusetts: Harvard Library, 2008, p. 45, Kidle.

[ii] Constituição da República Federativa do Brasil

[iii] Samuel Gregg, Reason, Faith, and the Struggle for Western Civilization. New Jersey: Regnery Publishing. 2019, p. 32-36.

[iv] Yuval Noah Harari, Sapiens: Uma breve história da humanidade. Porto Alegre,RS: L&PM Editores, 2019, p. 236.

[v] Ibid., p.236

[vi] Scott D. Allen, Why Social Justice Is Not Biblical Justice: An Urgent Appeal to Fellow Christians in a Time of Social Crisis. Grand Rapids, MI: Credo House, 2020, capítulo 6, Kindle.

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